Lei Complementar nº 208/2024: securitização das dívidas ativas da União, Estados e Municípios no mercado

A Lei Complementar nº 208/2024, sancionada em 2 de julho de 2024, abriu espaço para a securitização de parte das dívidas ativas da União, estados, Distrito Federal e municípios, sejam de origem tributária ou não tributária, junto ao mercado financeiro, em prol do objetivo de captação de recursos e maior eficiência tributária, com vistas a reduzir o passivo dos cofres públicos.

Na prática, isso significa que, por meio da aludida lei complementar e ulteriores legislações específicas a serem confeccionadas por cada ente da federação, esses poderão negociar os títulos que detêm com pessoas jurídicas de direito privado e/ou fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ou seja, se trata da possibilidade de os entes públicos realizarem operações de venda definitiva de patrimônio público [1] (§4º do artigo 39-A).

Nesse caso, os entes da administração pública poderão promover as vendas por meio de uma  sociedade de propósito específico (SPE), criada especificamente para esse fim e, nesse caso, sendo dispensado o processo licitatório. No entanto, caso se valham de um intermediário, a regra da licitação permanece vigente, para que a cessão dos direitos creditórios seja considerada legal, por interpretação teleológica.

Preocupações

Tal questão é nova no nosso ordenamento jurídico, configurando uma espécie de novo marco regulatório. Embora muito singela ainda, a nova lei dependente de novas legislações que tragam maiores definições e segurança jurídica, eis que nela, há a sinalização de observância da transparência, preservação da natureza do crédito, bem como de atualização e correção dos valores, datas de vencimento, prazos (artigo 39-A) e etc., com vistas a reduzir a inadimplência dos cofres estatais; no entanto não há definições dos limites necessários a serem observados para sua aplicação que tragam garantias claras tanto para o interesse público quanto para os sujeitos passivos das obrigações a serem securitizadas.

Embora o legislador tenha tido a preocupação com a transparência e à preservação das garantias estampadas na lei e, acima citadas, há preocupações latentes pelo largo histórico de insegurança jurídica do nosso arcabouço fiscal, isso porque, aludindo aos contribuintes, é recorrente a ocorrência de cobranças indevidas ou a maior por parte do Fisco.

Veja, a lei buscou trazer novidades que amparam a eficiência fiscal para o Estado, incluindo na lei uma novidade, que é a do protesto judicial ou extrajudicial ser causa de interrupção da prescrição dos créditos tributários (alteração do artigo artigo 174, II CTN). Entretanto, há que serem positivadas normas que tragam maior segurança de como isso será feito, ou seja, quais são os requisitos, procedimentos e quais são os limites, a fim de evitar possíveis abusos cometidos em face dos sujeitos passivos.

Parcimônia

Além disso, a lei também visa ampliar o acesso da administração pública às informações patrimoniais dos contribuintes, também em prol da garantia de recebimento dos valores devidos aos entes (artigo 198, §§ 4º e 5º CTN), ou seja, se de um lado há que se preservar o interesse público, também não podem os contribuintes se sujeitarem a excessos descabidos de regulamentação clara e eficaz, que respeite os princípios constitucionais balizadores do Estado democrático de Direito e, nesse caso em especial ao direito de propriedade, garantia fundamental insculpida no artigo 5º, XXII da Constituição federal, devendo ser observado o devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF) nesses casos.

Logo, se de um lado vislumbramos omissões regulamentares para os sujeitos passivos devedores de eventuais créditos junto ao erário, de outro lado, também permeia a insegurança jurídica para os entes públicos, com diversos percalços a serem sanados, a fim de que tal securitização de fato não contrarie o artigo 167, IV da Constituição federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Resolução nº 17 do Senado, ou seja, a nova legislação não pode ser prejudicial ao erário em verdadeira contrariedade ao interesse público, e inclusive ao próprio propósito da Lei Complementar 208/2024, isso porque tentativas anteriores de securitização de créditos estatais vinham sendo objeto de inúmeras discussões junto aos Tribunais de Conta e Poder Judiciário, principalmente em razão do princípio da indisponibilidade do interesse público na gestão de receitas em decorrência de possíveis deságios na cessão desses créditos.

Também se questiona a natureza jurídica dessas operações, pois ao passo que lei estabelece se tratarem os créditos de patrimônio público, é contravertido essa definição haja vista o que determina a Lei de Responsabilidade Fiscal [2], que definiu que as contas públicas devem ser equilibradas por força do interesse público e que adota as definições do que é a dívida pública mobiliária e operações de crédito (artigo 29 da LRF).

Portanto, é preciso parcimônia na aplicação da nova lei complementar, buscando corrigir os erros e omissões apontadas, a fim de garantir a segurança jurídica tanto para os contribuintes quanto para o erário, visando a preservação do interesse público, em consonância com a nossa Constituição e à Lei de Responsabilidade Fiscal em prol da eficiência fiscal e equilíbrio das contas públicas, respeitando, contudo, a transparência, princípio da motivação, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, legalidade, isonomia e não confisco.


[1] Segundo a Lei determina no §4º do artigo 39-A.

[2] Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.

§1º. A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

Artigo publicado no Conjur

Por: Dra Isadora De Biasio

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